42091210229051065199.png O Axis Mundi: Entenda o paradoxo de EPR

Entenda o paradoxo de EPR

por Osvaldo Pessoa Jr.
Já vimos, no texto “O Primeiro Debate Einstein-Bohr” (clique aqui), que Albert Einstein não aceitava a interpretação ortodoxa da teoria quântica, formulada em 1928 por Niels Bohr, Werner Heisenberg e Wolfgang Pauli, entre outros. Na década de 1930, ele continuou investigando possíveis furos na interpretação ortodoxa, até que em 1935, já trabalhando na Universidade de Princeton, Einstein redigiu um importante artigo com os jovens Boris Podolsky e Nathan Rosen, trabalho este que passou a ser conhecido pela sigla “EPR”.

A conclusão do trabalho de EPR, publicado no periódico Physical Review, é que a teoria quântica, no estágio em que estava em 1935 (e que está ainda hoje), seria incompleta, ou seja, haveria elementos reais, na estrutura dos átomos, dos quais a teoria quântica não seria capaz de dar conta. Segundo o físico Léon Rosenfeld, que trabalhava com Bohr na época, “este ataque caiu sobre nós como um raio dos céus!”.
A idéia de EPR foi considerar um sistema de duas partículas quânticas correlacionadas, de tal forma que a medição direta em uma delas (que chamaremos “partícula 1”, localizada digamos na Terra) constituísse uma medição indireta na outra (a “partícula 2”, em Titã, a lua de Saturno, por exemplo). Já exploramos tais sistemas “emaranhados” em outros textos, como “Teorema de Bell para Crianças” (clique aqui) e “Astrobigobaldo quer Informação Instantânea” (clique aqui).

Neste último texto, tentamos explicar a peculiar natureza do estado quântico emaranhado. Por exemplo, o chamado estado de “singleto” possui uma simetria global que não existe em sistemas da física clássica: os “spins” (a direção e sentido do imã associado às partículas) das duas partículas emaranhadas são sempre medidos em sentidos opostos (quando os dois detectores estão alinhados na mesma direção), qualquer que seja a direção dos detectores.
Colapso da onda
Na teoria quântica, já vimos também (no texto “O Problemático Colapso da Onda” - clique aqui) que se pode pensar que a onda quântica associada ao sistema (no nosso caso aqui, uma onda única que evolve as duas partículas) sofre colapsos instantâneos sempre que se realiza uma medição. A regra que descreve essa redução de estado é conhecida por “postulado da projeção”. Para o caso de duas partículas emaranhadas, o estado global do sistema se altera instantaneamente com a medição em apenas uma delas. Ou seja, mesmo quando as partículas estão longe uma da outra, a medição em uma delas (na Terra) altera instantaneamente o estado que atribuímos para a outra (em Titã). Se este estado corresponder a algo real (questão que é passível de discussão), então temos uma espécie de ação à distância, ou não-localidade.
Pode-se então dizer que, no nível do formalismo da teoria, a redução global de estado é não-local. EPR sabiam disso. No entanto, introduziram uma hipótese de localidade, que dizia, grosso modo, que a escolha sobre qual observável medir na Terra não pode afetar instantaneamente (ou com velocidade maior do que a da luz) o estado da partícula em Titã. Com duas suposições contraditórias (a não-localidade embutida no formalismo quântico, e a localidade aceita intuitivamente pela maioria dos físicos da época), não é de se espantar que EPR conseguissem argumentar que a mecânica quântica é incompleta (pois em um sistema lógico usual, a partir de duas teses contraditórias pode-se derivar qualquer teorema). “Somos assim forçados a concluir que a descrição quântica da realidade física através das funções de onda não é completa”.
Para apresentarmos um resumo do argumento, é preciso lembrarmos do princípio de incerteza, que diz que se medimos com exatidão uma grandeza como a posição de uma partícula, necessariamente uma outra grandeza estará mal definida (não podemos associar a ela um valor exato), que no caso é a velocidade (ou o momento linear) (ver texto “O Princípio de Incerteza” - clique aqui ). Diz-se que posição e velocidade são “observáveis incompatíveis”. No caso de partículas com spin, duas variáveis incompatíveis podem ser “spin na direção z” (spin-Z) e “spin na direção x” (spin-X).

Na Terra, posso medir o observável spin-Z e, com isso (devido ao colapso ou postulado da projeção), o estado da partícula 2 passa a ter um valor bem definido para seu spin-Z. (Se o valor do primeiro é +½, o do segundo é -½; e se do primeiro for -½, o do segundo é +½.) Mas na Terra eu também poderia medir o observável spin-X, incompatível com spin-Z, e assim em Titã o estado da partícula 2 se reduziria a um valor bem definido para spin-X (que é incompatível com spin-Z).

Agora, veja bem: pela hipótese da localidade, suposta por EPR, nada que eu faça na Terra pode afetar instantaneamente (ou a uma velocidade maior do que a da luz) a realidade em Titã. Mas como eu posso medir tanto spin-Z quanto spin-X, na Terra, então tanto spin-Z quanto spin-X têm valores simultaneamente bem definidos em Titã, ao contrário do que diz a mecânica quântica (pois spin-Z e spin-X, para a mesma partícula, são incompatíveis).
Até onde vai a teoria quântica?

Portanto, a teoria quântica não daria conta de todos os detalhes da realidade, e assim ela seria incompleta. A teoria quântica continua sendo considerada “correta” por EPR; ou seja, tudo que ela diz sobre os átomos é verdadeiro. No entanto, ela não diz tudo que se pode dizer a respeito da realidade (é “incompleta”).
Notemos que o argumento de EPR não envolve a realização de nenhuma medição. Na Terra, eu posso medir spin-Z, e eu posso medir spin-X. Em um caso, o spin-Z em Titã é bem definido, no outro o spin-X em Titã é bem definido. Mas como minha escolha não pode afetar instantaneamente a realidade em Titã (que está muito longe), conclui-se que os valores bem definidos (de observáveis incompatíveis) em Titã existem simultaneamente na realidade, independentemente do que se faça na Terra.
Cinco meses após o artigo de EPR, Bohr publicou sua resposta, na mesma revista. Por um lado, Bohr criticou que fizesse sentido dar um argumento que não envolvesse medições (só a possibilidade de realizar uma medição). Mais adiante, porém, ele apresentou uma frase que até hoje divide os comentaristas:
“É claro que não se coloca a questão, em um caso como o considerado, de um distúrbio mecânico no sistema considerado, durante o derradeiro estágio crítico do procedimento de medição. Mas mesmo neste estágio há essencialmente a questão de uma influência nas próprias condições que definem os tipos possíveis de previsões relativas ao comportamento futuro do sistema”.
Ou seja, por um lado, ao descartar um “distúrbio mecânico”, Bohr parece aceitar o princípio de localidade de EPR; mas logo em seguida ele afirma que a própria “definição” do sistema composto de duas partículas depende da escolha feita pelo experimentador com relação a uma das partículas, o que é uma maneira de reafirmar o caráter não-local da mecânica quântica.
Hoje em dia, alguns autores, como John Bell, consideram a resposta de Bohr insatisfatória. Outros autores, como Don Howard, reconstroem a posição de Bohr como sendo a de uma aceitação da localidade e uma rejeição da separabilidade, distinção esta que ressurge nas discussões mais recentes sobre o teorema de Bell (distinção entre localidade controlável e localidade incontrolável).
Uma resposta um pouco diferente foi dada por Pauli, em 1948. Ele salientou que o estado quântico deve ser interpretado de maneira “epistêmica”, apenas como um instrumento matemático para se fazerem previsões, e não como uma entidade real. Assim, o fato de a redução de estado ser não-local não violaria a condição de localidade, esta sim valendo na realidade.
Erro de Einstein
Hoje em dia é comum se dizer que “Einstein errou” ao enunciar o seu paradoxo com Podolsky e Rosen (ver por exemplo a revista La Recherche de abril de 2008). Qual teria sido seu erro? Para alguns, é a defesa do princípio de localidade. Para outros, é a insistência em falar de uma realidade independente da medição. De fato, EPR partem de uma hipótese de localidade (controlável e incontrolável), e ao concluírem que a mecânica quântica seria incompleta, acabam por defender uma interpretação realista. Porém, o resultado básico do teorema de Bell e dos experimentos subseqüentes é que teorias realistas locais são insustentáveis, e seria esta a concepção que está implícita na conclusão do artigo de EPR. Assim, Einstein errou, mas o seu erro foi muito frutífero, gerando trabalhos importantes de Schrödinger e Furry, em 1935, e posteriormente inspirando a interpretação causal de David Bohm (1952), que acabaria levando ao teorema de Bell (1964).
O historiador da ciência Max Jammer, em seu livro The Philosophy of Quantum Mechanics, examina em detalhes a proposta do paradoxo de EPR, e cita (p. 187) uma conversa que Einstein teve a respeito da reação ao seu trabalho, dizendo que ele recebeu várias cartas de físicos apontando qual seria o erro de seu argumento. O que divertia Einstein era que todos afirmavam com segurança que ele estava errado, mas cada um dava uma razão diferente para sua afirmação!
Vale também mencionar que uma situação análoga ao arranjo de EPR (que, por sinal, não envolvia os observáveis de spin, mas sim posição e velocidade) fora examinada em 1931 por Carl von Weizsäcker, aluno de Heisenberg. Porém, no contexto da interpretação ortodoxa tal situação não parecia paradoxal, e um argumento de incompletude não fora derivado. 

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