09 Mar 2008
Até agora os observáveis do sistema físico e das propriedades associadas foram apresentados em forma abstrata. Neste artigo insistirei em um conjunto de observáveis de grande importância para a descrição dos sistemas físicos. São eles: as coordenadas generalizadas, os impulsos canônicos, a energia e a ação. Em continuação definirei escalas características para todos os sistemas físicos, o que permitirá estabelecer uma classificação dos mesmos e assim definir os graus de aplicação das diferentes teorias físicas disponíveis para seu estudo. Neste contexto é fundamental determinar os limites de validez de nossa intuição quando ela se aplica aos sistemas físicos.
Na Figura 2 se pode ver esta construção, que designamos com o nome de "diagrama V - I" (velocidade-inação). Neste, cada sistema físico estará representado por um ponto ou uma pequena região e as duas leis fundamentais implicam que os mesmos se posicionarão dentro de um retângulo limitado pelos eixos e pelos valores:
"c" e "1 / ћ"
É um sonho dos físicos (ou um prejuízo) que em época próxima se desenvolva uma teoria completa, no sentido de que contenha em seu formalismo uma representação para todos os elementos relevantes da realidade física, e concluída, no sentido de que todos os aspectos de seu formalismo tenham uma interpretação clara e sem ambigüidades, e que seja aplicável a todos os sistemas físicos posicionados dentro do retângulo do diagrama V-I, podendo predizer comportamentos que se corroborem experimentalmente. Para completar o sonho podemos pedir, além disso, que esta teoria seja de grande beleza, simples e de fácil divulgação.
Tal sonho não se realizou ainda, mas existem boas aproximações à teoria desejada que são aplicáveis em certas regiões parciais do diagrama V-I. Para apresentar estas teorias consideremos o retângulo do diagrama dividido em quatro regiões que correspondem à velocidades muito menores que "c" ou próximas a eIa, e a ações muito maiores ou próximas a "ћ". Os limites entre estas quatro regiões são difusos. Para a análise e estudo dos sistemas físicos que se posicionam na região inferior esquerda do diagrama V-I, ou seja, para aqueles caracterizados por velocidades muito menores que a velocidade da luz e por uma ação muito maior que ћ dispomos de uma teoria, a mecânica clássica (MC), que nasceu com Galileu e Newton no século XVII e se foi aperfeiçoando até adquirir um formalismo de grande beleza e potência no século XIX.
Esta teoria conta, além disso, com uma interpretação clara e sem ambigüidades e, no século XIX, ninguém supunha que fracassaria rotundamente quando fosse aplicada a sistemas físicos posicionados fora da região marcada por MC no diagrama. Pensava-se que se havia encontrado a teoria definitiva da física, sem suspeitar que o século XX traria duas revoluções científicas que fariam estremecer sua hegemonia.
A mecânica clássica explicava desde o movimento dos planetas até o comportamento dos objetos menores acessíveis a nossos sentidos. Com êxito se estendeu a sistemas de muitas partículas na mecânica estatística, termodinâmica e mecânica de sistemas contínuos como os gases, fluidos e sólidos. Pensava-se que não havia mais que refinar os métodos de cálculo para explicar o comportamento de todos os sistemas físicos. Era uma época de grande soberba. Dizia-se que conhecendo a posição e velocidade de todas as partículas do universo poderíamos calcular sua posição até o final dos tempos. Somente alguns pequenos problemas opunham resistência: não se podia explicar a distribuição de freqüência (cor) da luz emitida pelos corpos quando se esquentam e tampouco se podia detectar o incremento na velocidade da luz quando a fonte que a emite se move. A solução a estes "pequenos" problemas geraria duas grandes revoluções paradigmáticas: por um lado, a mecânica quântica e, por outro, a teoria da relatividade.
Os sistemas físicos representados na região marcada por MCR, ou seja, aqueles de grande ação (inação pequena), mas velocidades que se aproximam à da luz, devem ser estudados com a teoria da relatividade que denomino aqui mecânica clássica relativista (MCR). Os que estão caracterizados por ação próxima a ћ e velocidades pequenas serão tratados com a mecânica quântica (MQ), que é a teoria que nos ocupa nesta seqüência de artigos de Coluna da RedePsi. Finalmente, para os sistemas físicos que requerem um tratamento quântico e relativista, dispomos da mecânica quântica relativista (MQR) para seu estudo.
Considerando o formalismo e a interpretação destas quatro teorias, encontramos diferenças significativas. As duas teorias "clássicas", MC e MCR, podem ser consideradas completas e concluídas por ter um formalismo que abarca todas as propriedades do sistema físico e porque todos os elementos daquele possuem uma interpretação clara e sem ambigüidades. Além disso, ambas as teorias se conectam em forma contínua entre si, porque tanto seus formalismos como suas interpretações coincidem no limite de considerar à velocidade da luz "c" tão grande, comparada com as velocidades do sistema físico, que possa ser tornada infinita.
Isto significa que se em qualquer fórmula da MCR tomamos o limite c→∞, obtém-se uma fórmula válida em MC e, do mesmo modo, todos os conceitos de massa, velocidade, aceleração, força, energia etc., coincidem neste limite. Com respeito ao grau de validez de ambas as teorias se deve esclarecer que, se bem que a MC não se pode aplicar na região MCR do diagrama, a MCR sim se pode aplicar na região MC com resultados corretos. Pode-se calcular o lento movimento do pêndulo de um relógio com a MCR, ainda que com a MC chega-se mais facilmente a resultados suficientemente precisos para todos os fins práticos. O mesmo sucede com os graus de aplicação da MQ e da MC. A MQ é válida na região da MC, mas não o inverso, e torna-se bastante estranho, ainda que correto, calcular o pêndulo do relógio com a MQ. Contrariamente ao que sucede entre a MCR e a MC, não existe entre MC e MQ uma transição suave para seus formalismos nem para suas interpretações. A MQ conta com um belíssimo formalismo, mas este não se transforma no formalismo da MC quando fazemos o limite ћ → 0. É certo, contudo, que as predições experimentais da MQ se conectam com as correspondentes da MC neste limite. Temos mencionado várias vezes que a MQ não tem ainda uma interpretação definitiva, pelo que nem sempre está clara a relação entre o significado dos elementos do formalismo da MQ com os conceitos da MC. A MQR é, em princípio, aplicável a todos os sistemas físicos do diagrama V-I. Contudo, esta teoria dista muito de ser a teoria sonhada pelos físicos, já que seus problemas de interpretação são, todavia, mais graves que os da MQ e, apesar dos formidáveis avanços feitos nas três últimas décadas, seu formalismo tem ainda sérias dificuldades matemáticas não resolvidas.
Finalizo a apresentação das diferentes teorias físicas mencionando o posicionamento no diagrama V-I do eletromagnetismo.
Esta teoria estuda os campos elétricos, magnéticos e as ondas eletromagnéticas. Contudo, pode considerar-se que o sistema físico de estudo que lhe corresponde é o fóton, partícula de massa zero que se move à velocidade da luz, o que coloca esta teoria na linha superior do diagrama V-I. Ainda que se ignore sua origem, o eletromagnetismo acabou sendo uma teoria relativista. Tampouco mencionamos a teoria da relatividade geral, necessária quando o sistema físico em questão possui campos gravitacionais tão intensos que modificam a geometria euclidiana introduzindo uma "curvatura" local. A rigor, para introduzir esta nova teoria necessitaríamos uma nova dimensão no diagrama.
O diagrama V-I nos permitiu classificar os sistemas físicos e, em particular, definir a MQ fixando seu grau de aplicação. Ajuda-nos, além disso, apresentar um argumento de importância para poder estudar a MQ. Notemos que no diagrama se posicionou uma figura humana na região MC. Isto significa que todos os sistemas físicos com os que o ser humano inter-atua, que são aqueles que vão formar nossa intuição, são sistemas clássicos. De fato, nossa expectativa, o que intuitivamente esperamos do comportamento dos sistemas físicos, se formou, ou foi gerado, a partir do contato que temos através de nossa percepção sensorial com sistemas físicos clássicos. Mas sabemos que existem sistemas físicos nos quais a teoria clássica fracassa rotundamente; portanto, não devemos nos assombrar demasiado que a própria intuição também fracasse quando pretendemos aplicá-la em tais casos. Devemos estar preparados a tolerar que o estudo dos sistemas quânticos ou relativistas exija a aceitação de certos conceitos que podem ser altamente contrários à nossa intuição. Por exemplo, o contato com os sistemas clássicos nos acostumou a somar as velocidades como se fossem números: se lançamos uma pedra a 20 km/h de um veículo que se move a 10 km/h, a velocidade da pedra relativa ao solo será 20 + 10 = 30 km/h. Mas se o veículo se move à metade da velocidade da luz (0,5c) e a pedra é um fóton que viaja à velocidade da luz, nossa intuição se equivocará ao predizer c + 0,5c = 1,5c violando a lei fundamental V ≤ c. A intuição clássica nos diz que as fitas e relógios que usamos para medir distâncias e tempos são invariantes absolutos para todos os observadores. Contudo, a relatividade viola nossa intuição clássica ao propor que ao longo das fitas e o período dos relógios variam segundo a velocidade que estes tenham. Esta contração das distâncias e dilatação do tempo tem sido confirmada, sem lugar a dúvidas, em numerosos experimentos. Outro exemplo: o contato com sistemas clássicos nos acostumou a que uma pedra está em um lugar ou não está ali; na mecânica quântica a um elétron se lhe assinala uma probabilidade de estar em certo lugar que, em algumas ocasiões, não é nem zero (não está), nem um (está), ou algum valor intermediário.
A intuição é clássica por haver sido gerada em contato com sistemas físicos clássicos. O estudo de sistemas relativistas ou quânticos requer adotar alguns conceitos contrários à intuição.
O conceito de posição dos objetos no espaço é formalizado nos sistemas físicos com o observável de posição X ao qual se assinalam valores que correspondem à distância do objeto a certos pontos ou eixos eleitos convencionalmente, e que recebe o nome de "coordenada". Já foi mencionado que a coordenada X caracteriza a posição de uma partícula que se move ao longo de uma linha (um caminhante em uma rua) e que pode tomar diferentes valores (X = 5 m, por exemplo). Para caracterizar uma partícula que se move sobre um plano (um caminhante em uma cidade) é necessário fixar duas coordenadas X, Y, e se a partícula se move no espaço de três dimensões serão necessárias três coordenadas X, Y, Z. Se o sistema físico tem duas partículas, as coordenadas se duplicarão, e se temos, por exemplo, 8 partículas que se movem em três dimensões, serão necessárias 3 x 8 = 24 coordenadas. O número de coordenadas necessário para fixar exatamente a posição de um sistema físico equivale aos "graus de liberdade" do mesmo.
Nos exemplos anteriores, as coordenadas eram distâncias a pontos ou eixos. Para certos sistemas físicos é conveniente eleger coordenadas que correspondem a ângulos que fixam direções, referidas a uma direção dada. O estado de uma biruta que indica a direção do vento se caracterizará mais naturalmente com um ângulo. O mesmo sucede com a posição de todo sistema físico onde a rotação seja relevante.
Denominam-se coordenadas generalizadas aos observáveis (distâncias, ângulos, o que seja) eleitos para determinar sem ambigüidade a posição ou localização do sistema físico. A estes observáveis os designamos com as letras Q1, Q2, Qa,... Qk.
Nossa experiência nos indica que os valores associados às coordenadas variam com o tempo. Se para uma partícula em movimento ao longo de uma linha temos em um instante a propriedade X = 5 m, em algum instante posterior poderemos ter a propriedade X = 8 m. Isto significa que, associado a cada coordenada, podemos definir outro observável: a velocidade com que muda o valor assinalado à coordenada. Por exemplo, se V é o observável, o sistema físico definido pode ter a propriedade V = 2 metros por segundo. Se a coordenada em questão é um ângulo, a velocidade associada será uma velocidade angular de rotação. A velocidade é uma quantidade essencialmente cinemática, pois se refere à descrição espaço-temporal do movimento. O formalismo da mecânica clássica nos ensinou que a velocidade associada a uma coordenada é relevante, mas muito mais o é uma quantidade que depende da velocidade e também da quantidade de matéria que se encontra em movimento. Um mosquito que avança a 60 km/h não é o mesmo que uma locomotiva a essa velocidade. Define-se, então, o impulso como o produto da velocidade pela massa P = m V. Esta é uma quantidade dinâmica - vinculada às causas que originam o movimento -, cujo valor se conserva quando nenhuma força atua e cuja mudança temporal depende da força aplicada na direção indicada pela coordenada. Se a coordenada é um ângulo, o impulso associado será a velocidade angular multiplicada por uma quantidade que indica a inércia ou resistência que opõe o corpo a ser rodado com maior velocidade.
Generalizamos isto dizendo que, para cada coordenada generalizada, se define uma quantidade dinâmica chamada impulso canônico, que indicamos pelas letras P1, P2, Pa,... Pk, e que está relacionado com a velocidade e com a inércia ou resistência que o sistema opõe às mudanças de dita velocidade.
As coordenadas generalizadas Q1, Q2, Qa,... Qk, e os impulsos canônicos correspondentes P1, P2, Pa,... Pk, são observáveis que participam na descrição da cinemática e dinâmica do sistema físico.
A meta da mecânica clássica é determinar como variam com o tempo as propriedades associadas a todas as coordenadas e impulsos simultaneamente. Para propor as equações matemáticas que permitem alcançar esta meta é de grande utilidade definir duas quantidades que dependem de todas as coordenadas e impulsos do sistema físico, a saber: a energia e a ação. Ambas as quantidades também são importantes em nosso caso, apesar de que, como veremos mais adiante, a meta proposta para a mecânica clássica seria inalcançável para a mecânica quântica.
Todo corpo em movimento possui uma quantidade de energia devido ao mesmo movimento, que se denomina "energia cinética". Quando um corpo choca contra algum objeto e se detém, libera sua energia cinética, a qual fica de manifesto nos danos e deformações produzidos. Esta energia pode ser incrementada pela ação de uma força, que efetua um trabalho e aumenta a velocidade do corpo. Se não se aplica nenhuma força, a energia cinética, como o impulso também, mantém seu valor constante. Em geral, a energia cinética se expressa matematicamente como uma função que depende de todas as velocidades associadas a todas as coordenadas generalizadas. Mais adequado é expressá-la como função dos impulsos canônicos.
Além disso, da energia cinética ou do movimento, que é fácil de imaginar, existe outra forma de energia algo mais abstrata que se chama "energia potencial". É a energia, ainda não realizada, que existe nas forças aplicadas ao corpo e que eventualmente se transformará em energia cinética.
Para ilustrar a relação entre estas duas formas de energia, consideremos um pêndulo que oscila subindo e baixando pela ação de seu peso, isto é, da força de gravidade. Lembremos nossa infância, quando nos balançávamos no parque dominando esse sistema físico que é o pêndulo. No ponto mais baixo do pêndulo corresponde a máxima velocidade. Portanto, a energia cinética é máxima. Neste ponto, a força, ou seja, o peso é perpendicular ao movimento e não pode produzir-se nenhuma mudança em seu valor. Ali começamos a elevar-nos, "carregando" de energia potencial à força de atração da Terra e diminuindo a energia cinética. Isto continua até chegar ao ponto mais alto do pêndulo, onde o movimento se detém; a energia cinética transformou-se totalmente em potencial, a que novamente começará a transformar-se em cinética ao iniciar a queda com velocidade crescente. No pêndulo, a energia vai mudando em forma periódica entre cinética e potencial, permanecendo a soma de ambas constante em todo o processo. A energia potencial, que neste exemplo está associada à coordenada "altura", será, em geral, dependente de todas as coordenadas do sistema físico.
O conceito de energia se formaliza na mecânica clássica pela função chamada hamiltoneana, que se obtém somando a energia cinética mais a potencial associada a todas as coordenadas generalizadas e impulsos canônicos do sistema físico. A partir desta função se obtém na mecânica clássica as equações chamadas "de Hamilton", que determinam o comportamento temporal de todas as posições e impulsos, relacionando as variações temporais das mesmas com a variação hamiltoneana com respeito às coordenadas e impulsos. Em outras palavras, o conhecimento hamiltoneano nos permite alcançar a meta proposta para a mecânica clássica.
Pelo visto, a energia tem um papel de fundamental importância na física. Os físicos se sentem incomodados quando esse belíssimo conceito é manuseado e desvirtuado por pseudo-cientificismos que o adotam para dar-lhe algum brilho a suas charlatanices roubando o prestígio que o mesmo tem na física.
O outro conceito que determina a dinâmica dos sistemas físicos é o da ação. Esta quantidade pode expressar-se em várias formas equivalentes que envolvem uma evolução temporal ou espacial do sistema. Entre a energia e a ação existe uma diferença importante. A energia se pode expressar como uma função generalizada de todas as coordenadas e de seus impulsos canônicos correspondentes em qualquer instante. Lembremos que o impulso canônico associado a uma coordenada é a variável dinâmica relacionada à "velocidade" de variação da coordenada em questão e à resistência à mudança na mesma. A ação não depende do valor instantâneo que tomam as coordenadas e os impulsos, mas, pelo contrário, depende de todos os valores que estes tomam durante um processo de evolução do sistema que pode estar definido entre dois instantes dados. A ação é, então, uma quantidade global, característica da evolução temporal e espacial do sistema e não do estado instantâneo e local do mesmo. Não darei aqui a expressão matemática para a ação, porque não será necessária para as nossas metas.
Somente é importante ressaltar que cada coordenada QK com seu impulso canônico associado PK contribui para a ação em uma quantidade que podemos aproximar mediante o produto da "distância" ∆QK recorrida pelo sistema em sua evolução pelo impulso médio <PK>. Além destas contribuições, a energia do sistema contribui em uma quantidade que também podemos aproximar mediante o produto do tempo ∆T de evolução pela energia média. Para alcançar a meta da física clássica, que, como já se mencionou, é obter a dependência temporal do valor de todas as coordenadas e impulsos, a partir da ação, é necessário postular o famoso princípio da mínima ação (princípio de Hamilton), o qual estabelece que as coordenadas e impulsos como funções do tempo, Qk(t) e Pk(t) serão tais que a ação adquira um valor mínimo.
À miúdo, físicos e matemáticos utilizam palavras que têm um significado usual na linguagem comum para nomear conceitos com significados precisos em suas teorias. Não necessariamente ambos os significados são compatíveis, o que pode gerar confusão. Por exemplo, aos quarks, partículas elementares que formam os prótons, nêutrons e outras partículas, lhes assinalam certas propriedades chamadas "cor" e "sabor" que, evidentemente, nada têm em comum com o sabor e cor de uma fruta. Os matemáticos falam de números "naturais", que não são nem mais nem menos naturais que os outros. Os números "reais" não são atributos de reis nem têm mais realidade que os "complexos", os quais, por sua vez, não são mais complicados que os demais. A palavra "ação" tem um significado bastante claro na linguagem comum e é natural perguntar-se se este significado é compatível com o conceito físico que nomeia. Acontece que o nome é bastante adequado porque, também em física, designa a capacidade que o sistema tem de modificar seu entorno e de inter-atuar com outros sistemas físicos.
Um sistema físico caracterizado em sua evolução por um valor grande de ação pode modificar fortemente a outros de pequeno valor sem sofrer grandes alterações. O jogo de tênis é possível porque os jogadores estão caracterizados por valores de ação muito grandes comparados com o da bola. (Os elétrons se repelem porque têm cargas elétricas de igual sinal, mas também se pode dizer que o fazem porque pretendem jogar o tênis com fótons. O jogo não dura muito tempo porque, ao ser a ação dos "jogadores" equiparável à ação da "bola", aqueles são repelidos.)
A energia total (cinética mais potencial) ou a ação fixam a dinâmica dos sistemas físicos. Na mecânica clássica permitem calcular a dependência temporal de todas as coordenadas generalizadas e de seus impulsos canônicos.
A variedade e o número de sistemas físicos a estudar é enorme. É tão grande a variedade e são tão grandes as diferenças entre os sistemas que podemos duvidar de que uma só teoria física possa tratá-los a todos. Para ter uma noção dos múltiplos sistemas físicos é útil estabelecer uma classificação dos mesmos. Mas com que critérios? O primeiro que se apresenta é classificar os sistemas físicos em "pequenos e grandes" ou, mais precisamente, de acordo com uma escala espacial X que corresponde à extensão que o sistema abarca. O sistema físico mais extenso que podemos pensar é simplesmente todo o universo físico, com uma escala espacial de X = 1010 anos-luz (1010 = 10.000.000.000). Um ano-luz é a distância que percorre a luz em um ano, ≈ 1016 metros. As galáxias, conjuntos de muitos milhões de sóis, estão caracterizadas por uma escala espacial de muitos milhares de anos-luz, e ao sistema solar lhe podemos assinalar como escala espacial seu diâmetro, na ordem dos 1012 metros. Aqueles sistemas físicos com os quais o ser humano estabelece um contato direto através de seus sentidos têm uma escala espacial em torno de um milímetro a um quilômetro. Abaixo disto encontramos escalas microscópicas para sistemas biofísicos, e chegamos às moléculas e átomos com escalas espaciais de 10-10 metros, dimensão que leva o nome de Angstrom e o símbolo Ǻ (10-10 = 1/1010). Os núcleos e as partículas elementares estão caracterizados por escalas espaciais de 10-15 metros (1 fermi). Estes são os sistemas físicos menores conhecidos hoje. Com os gigantescos aceleradores de partículas se pode sondar escalas até de 10-19 metros.
Da mesma forma que nos foi fácil classificar os sistemas físicos segundo seu tamanho, também é possível fazê-lo segundo uma escala temporal T, que corresponde ao tempo típico de evolução, de transformação ou de estabilidade dos sistemas físicos. As partículas elementares e núcleos atômicos têm tempos característicos entre 10-10 e 10-20 segundos. As moléculas e átomos se situam em uma escala temporal entre T = 10-6 e T = 10-9 segundos. A escala temporal do ser humano e dos objetos de sua experiência sensorial pode situar-se em torno do segundo ao século. Tempos típicos para o sistema solar serão de um ano; para as galáxias, muitos milhares de anos, e para todo o universo podemos eleger sua idade de 1010 anos.
Classificamos aqui os sistemas físicos segundo dois conceitos cinemáticos de extensão e rapidez de evolução. Esta classificação é simples, mas forçosamente incompleta, porque não contém informação sobre os conceitos dinâmicos que, como temos visto, são importantes para a descrição dos sistemas físicos.
Devemos, então, completar nossos critérios de classificação com duas escalas dinâmicas: o impulso P e a energia E, que correspondem aos valores típicos que se encontram nos sistemas físicos para estas quantidades.
Contamos, portanto, com quatro escalas X, T, P, E para classificar todos os sistemas físicos. Estas quatro escalas são claramente suficientes, mas, de certa forma, redundantes, porque, como veremos, somente com duas escalas, deduzidas das anteriores, obtemos uma classificação completa que põe em evidência as diferenças essenciais entre os sistemas físicos. Estas escalas são a velocidade e a ação. A primeira é cinemática e a segunda dinâmica.
Um sistema físico com uma extensão X, e cujas transformações se fazem em um tempo T estará caracterizado por uma velocidade V ≈ X / T. Esta escala de velocidade se obtém também combinando o impulso e a energia V ≈ E / P. Um sistema físico com energia E que evolui em um tempo típico T estará caracterizado por um valor de ação A ≈ ET, que também se pode obter considerando sua extensão X e seu impulso P : A ≈ XP. As relações entre as quatro escalas iniciais (X, T, P, E) e as duas últimas propostas se põem em evidência na Figura 1.
X ———— T V ≈ X / T ≈ E / P (Cinemática)
│ │
P ———— E A ≈ E . T ≈ X . P (Dinâmica)
FIGURA 1. Escala para classificar os sistemas físicos.
Se classificamos todos os sistemas físicos conhecidos de acordo com as escalas de velocidade e ação, nos enfrentamos com duas leis fundamentais da natureza às quais não se lhes conhece nenhuma exceção.
Primeira Lei:
Em nenhum sistema físico a matéria ou a energia se move com velocidade superior ao valor limite
c ≈ 3.108 metros por segundo (velocidade da luz).
Portanto: V ≤ c
Segunda Lei:
Na evolução de nenhum sistema físico a ação toma um valor inferior ao valor limite
ћ ≈ 10-34 joules por segundo (constante de Planck).
Portanto: A ≥ ћ
Estas duas leis impõem uma restrição aos possíveis valores de velocidade e ação que podem realizar-se na natureza. Contudo, os limites impostos foram descobertos no século XX devido a que:
1) a velocidade da luz é um valor relativamente grande comparado com as velocidades que usualmente percebemos, e
2) a constante de Planck é muito pequena comparada com a ação dos sistemas acessíveis à nossa percepção sensorial.
As implicações destas duas leis são enormes: a primeira foi o ponto de partida da teoria da relatividade de Einstein, e a segunda é conseqüência da mecânica quântica.
Para classificar todos os sistemas físicos segundo suas escalas de velocidade e ação é conveniente construir um diagrama com dois eixos perpendiculares. No eixo vertical assinalamos os valores da velocidade característica dos sistemas a classificar e no eixo horizontal os correspondentes ao inverso da ação: I = 1 / A, que podemos denominar "inação". Registramos o inverso da ação e não a ação porque a segunda lei, ao estabelecer um limite inferior para esta, fixa um limite superior para aquela.
Nos exemplos anteriores, as coordenadas eram distâncias a pontos ou eixos. Para certos sistemas físicos é conveniente eleger coordenadas que correspondem a ângulos que fixam direções, referidas a uma direção dada. O estado de uma biruta que indica a direção do vento se caracterizará mais naturalmente com um ângulo. O mesmo sucede com a posição de todo sistema físico onde a rotação seja relevante.
Denominam-se coordenadas generalizadas aos observáveis (distâncias, ângulos, o que seja) eleitos para determinar sem ambigüidade a posição ou localização do sistema físico. A estes observáveis os designamos com as letras Q1, Q2, Qa,... Qk.
Nossa experiência nos indica que os valores associados às coordenadas variam com o tempo. Se para uma partícula em movimento ao longo de uma linha temos em um instante a propriedade X = 5 m, em algum instante posterior poderemos ter a propriedade X = 8 m. Isto significa que, associado a cada coordenada, podemos definir outro observável: a velocidade com que muda o valor assinalado à coordenada. Por exemplo, se V é o observável, o sistema físico definido pode ter a propriedade V = 2 metros por segundo. Se a coordenada em questão é um ângulo, a velocidade associada será uma velocidade angular de rotação. A velocidade é uma quantidade essencialmente cinemática, pois se refere à descrição espaço-temporal do movimento. O formalismo da mecânica clássica nos ensinou que a velocidade associada a uma coordenada é relevante, mas muito mais o é uma quantidade que depende da velocidade e também da quantidade de matéria que se encontra em movimento. Um mosquito que avança a 60 km/h não é o mesmo que uma locomotiva a essa velocidade. Define-se, então, o impulso como o produto da velocidade pela massa P = m V. Esta é uma quantidade dinâmica - vinculada às causas que originam o movimento -, cujo valor se conserva quando nenhuma força atua e cuja mudança temporal depende da força aplicada na direção indicada pela coordenada. Se a coordenada é um ângulo, o impulso associado será a velocidade angular multiplicada por uma quantidade que indica a inércia ou resistência que opõe o corpo a ser rodado com maior velocidade.
Generalizamos isto dizendo que, para cada coordenada generalizada, se define uma quantidade dinâmica chamada impulso canônico, que indicamos pelas letras P1, P2, Pa,... Pk, e que está relacionado com a velocidade e com a inércia ou resistência que o sistema opõe às mudanças de dita velocidade.
As coordenadas generalizadas Q1, Q2, Qa,... Qk, e os impulsos canônicos correspondentes P1, P2, Pa,... Pk, são observáveis que participam na descrição da cinemática e dinâmica do sistema físico.
A meta da mecânica clássica é determinar como variam com o tempo as propriedades associadas a todas as coordenadas e impulsos simultaneamente. Para propor as equações matemáticas que permitem alcançar esta meta é de grande utilidade definir duas quantidades que dependem de todas as coordenadas e impulsos do sistema físico, a saber: a energia e a ação. Ambas as quantidades também são importantes em nosso caso, apesar de que, como veremos mais adiante, a meta proposta para a mecânica clássica seria inalcançável para a mecânica quântica.
Todo corpo em movimento possui uma quantidade de energia devido ao mesmo movimento, que se denomina "energia cinética". Quando um corpo choca contra algum objeto e se detém, libera sua energia cinética, a qual fica de manifesto nos danos e deformações produzidos. Esta energia pode ser incrementada pela ação de uma força, que efetua um trabalho e aumenta a velocidade do corpo. Se não se aplica nenhuma força, a energia cinética, como o impulso também, mantém seu valor constante. Em geral, a energia cinética se expressa matematicamente como uma função que depende de todas as velocidades associadas a todas as coordenadas generalizadas. Mais adequado é expressá-la como função dos impulsos canônicos.
Além disso, da energia cinética ou do movimento, que é fácil de imaginar, existe outra forma de energia algo mais abstrata que se chama "energia potencial". É a energia, ainda não realizada, que existe nas forças aplicadas ao corpo e que eventualmente se transformará em energia cinética.
Para ilustrar a relação entre estas duas formas de energia, consideremos um pêndulo que oscila subindo e baixando pela ação de seu peso, isto é, da força de gravidade. Lembremos nossa infância, quando nos balançávamos no parque dominando esse sistema físico que é o pêndulo. No ponto mais baixo do pêndulo corresponde a máxima velocidade. Portanto, a energia cinética é máxima. Neste ponto, a força, ou seja, o peso é perpendicular ao movimento e não pode produzir-se nenhuma mudança em seu valor. Ali começamos a elevar-nos, "carregando" de energia potencial à força de atração da Terra e diminuindo a energia cinética. Isto continua até chegar ao ponto mais alto do pêndulo, onde o movimento se detém; a energia cinética transformou-se totalmente em potencial, a que novamente começará a transformar-se em cinética ao iniciar a queda com velocidade crescente. No pêndulo, a energia vai mudando em forma periódica entre cinética e potencial, permanecendo a soma de ambas constante em todo o processo. A energia potencial, que neste exemplo está associada à coordenada "altura", será, em geral, dependente de todas as coordenadas do sistema físico.
O conceito de energia se formaliza na mecânica clássica pela função chamada hamiltoneana, que se obtém somando a energia cinética mais a potencial associada a todas as coordenadas generalizadas e impulsos canônicos do sistema físico. A partir desta função se obtém na mecânica clássica as equações chamadas "de Hamilton", que determinam o comportamento temporal de todas as posições e impulsos, relacionando as variações temporais das mesmas com a variação hamiltoneana com respeito às coordenadas e impulsos. Em outras palavras, o conhecimento hamiltoneano nos permite alcançar a meta proposta para a mecânica clássica.
Pelo visto, a energia tem um papel de fundamental importância na física. Os físicos se sentem incomodados quando esse belíssimo conceito é manuseado e desvirtuado por pseudo-cientificismos que o adotam para dar-lhe algum brilho a suas charlatanices roubando o prestígio que o mesmo tem na física.
O outro conceito que determina a dinâmica dos sistemas físicos é o da ação. Esta quantidade pode expressar-se em várias formas equivalentes que envolvem uma evolução temporal ou espacial do sistema. Entre a energia e a ação existe uma diferença importante. A energia se pode expressar como uma função generalizada de todas as coordenadas e de seus impulsos canônicos correspondentes em qualquer instante. Lembremos que o impulso canônico associado a uma coordenada é a variável dinâmica relacionada à "velocidade" de variação da coordenada em questão e à resistência à mudança na mesma. A ação não depende do valor instantâneo que tomam as coordenadas e os impulsos, mas, pelo contrário, depende de todos os valores que estes tomam durante um processo de evolução do sistema que pode estar definido entre dois instantes dados. A ação é, então, uma quantidade global, característica da evolução temporal e espacial do sistema e não do estado instantâneo e local do mesmo. Não darei aqui a expressão matemática para a ação, porque não será necessária para as nossas metas.
Somente é importante ressaltar que cada coordenada QK com seu impulso canônico associado PK contribui para a ação em uma quantidade que podemos aproximar mediante o produto da "distância" ∆QK recorrida pelo sistema em sua evolução pelo impulso médio <PK>. Além destas contribuições, a energia do sistema contribui em uma quantidade que também podemos aproximar mediante o produto do tempo ∆T de evolução pela energia média. Para alcançar a meta da física clássica, que, como já se mencionou, é obter a dependência temporal do valor de todas as coordenadas e impulsos, a partir da ação, é necessário postular o famoso princípio da mínima ação (princípio de Hamilton), o qual estabelece que as coordenadas e impulsos como funções do tempo, Qk(t) e Pk(t) serão tais que a ação adquira um valor mínimo.
À miúdo, físicos e matemáticos utilizam palavras que têm um significado usual na linguagem comum para nomear conceitos com significados precisos em suas teorias. Não necessariamente ambos os significados são compatíveis, o que pode gerar confusão. Por exemplo, aos quarks, partículas elementares que formam os prótons, nêutrons e outras partículas, lhes assinalam certas propriedades chamadas "cor" e "sabor" que, evidentemente, nada têm em comum com o sabor e cor de uma fruta. Os matemáticos falam de números "naturais", que não são nem mais nem menos naturais que os outros. Os números "reais" não são atributos de reis nem têm mais realidade que os "complexos", os quais, por sua vez, não são mais complicados que os demais. A palavra "ação" tem um significado bastante claro na linguagem comum e é natural perguntar-se se este significado é compatível com o conceito físico que nomeia. Acontece que o nome é bastante adequado porque, também em física, designa a capacidade que o sistema tem de modificar seu entorno e de inter-atuar com outros sistemas físicos.
Um sistema físico caracterizado em sua evolução por um valor grande de ação pode modificar fortemente a outros de pequeno valor sem sofrer grandes alterações. O jogo de tênis é possível porque os jogadores estão caracterizados por valores de ação muito grandes comparados com o da bola. (Os elétrons se repelem porque têm cargas elétricas de igual sinal, mas também se pode dizer que o fazem porque pretendem jogar o tênis com fótons. O jogo não dura muito tempo porque, ao ser a ação dos "jogadores" equiparável à ação da "bola", aqueles são repelidos.)
A energia total (cinética mais potencial) ou a ação fixam a dinâmica dos sistemas físicos. Na mecânica clássica permitem calcular a dependência temporal de todas as coordenadas generalizadas e de seus impulsos canônicos.
A variedade e o número de sistemas físicos a estudar é enorme. É tão grande a variedade e são tão grandes as diferenças entre os sistemas que podemos duvidar de que uma só teoria física possa tratá-los a todos. Para ter uma noção dos múltiplos sistemas físicos é útil estabelecer uma classificação dos mesmos. Mas com que critérios? O primeiro que se apresenta é classificar os sistemas físicos em "pequenos e grandes" ou, mais precisamente, de acordo com uma escala espacial X que corresponde à extensão que o sistema abarca. O sistema físico mais extenso que podemos pensar é simplesmente todo o universo físico, com uma escala espacial de X = 1010 anos-luz (1010 = 10.000.000.000). Um ano-luz é a distância que percorre a luz em um ano, ≈ 1016 metros. As galáxias, conjuntos de muitos milhões de sóis, estão caracterizadas por uma escala espacial de muitos milhares de anos-luz, e ao sistema solar lhe podemos assinalar como escala espacial seu diâmetro, na ordem dos 1012 metros. Aqueles sistemas físicos com os quais o ser humano estabelece um contato direto através de seus sentidos têm uma escala espacial em torno de um milímetro a um quilômetro. Abaixo disto encontramos escalas microscópicas para sistemas biofísicos, e chegamos às moléculas e átomos com escalas espaciais de 10-10 metros, dimensão que leva o nome de Angstrom e o símbolo Ǻ (10-10 = 1/1010). Os núcleos e as partículas elementares estão caracterizados por escalas espaciais de 10-15 metros (1 fermi). Estes são os sistemas físicos menores conhecidos hoje. Com os gigantescos aceleradores de partículas se pode sondar escalas até de 10-19 metros.
Da mesma forma que nos foi fácil classificar os sistemas físicos segundo seu tamanho, também é possível fazê-lo segundo uma escala temporal T, que corresponde ao tempo típico de evolução, de transformação ou de estabilidade dos sistemas físicos. As partículas elementares e núcleos atômicos têm tempos característicos entre 10-10 e 10-20 segundos. As moléculas e átomos se situam em uma escala temporal entre T = 10-6 e T = 10-9 segundos. A escala temporal do ser humano e dos objetos de sua experiência sensorial pode situar-se em torno do segundo ao século. Tempos típicos para o sistema solar serão de um ano; para as galáxias, muitos milhares de anos, e para todo o universo podemos eleger sua idade de 1010 anos.
Classificamos aqui os sistemas físicos segundo dois conceitos cinemáticos de extensão e rapidez de evolução. Esta classificação é simples, mas forçosamente incompleta, porque não contém informação sobre os conceitos dinâmicos que, como temos visto, são importantes para a descrição dos sistemas físicos.
Devemos, então, completar nossos critérios de classificação com duas escalas dinâmicas: o impulso P e a energia E, que correspondem aos valores típicos que se encontram nos sistemas físicos para estas quantidades.
Contamos, portanto, com quatro escalas X, T, P, E para classificar todos os sistemas físicos. Estas quatro escalas são claramente suficientes, mas, de certa forma, redundantes, porque, como veremos, somente com duas escalas, deduzidas das anteriores, obtemos uma classificação completa que põe em evidência as diferenças essenciais entre os sistemas físicos. Estas escalas são a velocidade e a ação. A primeira é cinemática e a segunda dinâmica.
Um sistema físico com uma extensão X, e cujas transformações se fazem em um tempo T estará caracterizado por uma velocidade V ≈ X / T. Esta escala de velocidade se obtém também combinando o impulso e a energia V ≈ E / P. Um sistema físico com energia E que evolui em um tempo típico T estará caracterizado por um valor de ação A ≈ ET, que também se pode obter considerando sua extensão X e seu impulso P : A ≈ XP. As relações entre as quatro escalas iniciais (X, T, P, E) e as duas últimas propostas se põem em evidência na Figura 1.
X ———— T V ≈ X / T ≈ E / P (Cinemática)
│ │
P ———— E A ≈ E . T ≈ X . P (Dinâmica)
FIGURA 1. Escala para classificar os sistemas físicos.
Se classificamos todos os sistemas físicos conhecidos de acordo com as escalas de velocidade e ação, nos enfrentamos com duas leis fundamentais da natureza às quais não se lhes conhece nenhuma exceção.
Primeira Lei:
Em nenhum sistema físico a matéria ou a energia se move com velocidade superior ao valor limite
c ≈ 3.108 metros por segundo (velocidade da luz).
Portanto: V ≤ c
Segunda Lei:
Na evolução de nenhum sistema físico a ação toma um valor inferior ao valor limite
ћ ≈ 10-34 joules por segundo (constante de Planck).
Portanto: A ≥ ћ
Estas duas leis impõem uma restrição aos possíveis valores de velocidade e ação que podem realizar-se na natureza. Contudo, os limites impostos foram descobertos no século XX devido a que:
1) a velocidade da luz é um valor relativamente grande comparado com as velocidades que usualmente percebemos, e
2) a constante de Planck é muito pequena comparada com a ação dos sistemas acessíveis à nossa percepção sensorial.
As implicações destas duas leis são enormes: a primeira foi o ponto de partida da teoria da relatividade de Einstein, e a segunda é conseqüência da mecânica quântica.
Para classificar todos os sistemas físicos segundo suas escalas de velocidade e ação é conveniente construir um diagrama com dois eixos perpendiculares. No eixo vertical assinalamos os valores da velocidade característica dos sistemas a classificar e no eixo horizontal os correspondentes ao inverso da ação: I = 1 / A, que podemos denominar "inação". Registramos o inverso da ação e não a ação porque a segunda lei, ao estabelecer um limite inferior para esta, fixa um limite superior para aquela.
Na Figura 2 se pode ver esta construção, que designamos com o nome de "diagrama V - I" (velocidade-inação). Neste, cada sistema físico estará representado por um ponto ou uma pequena região e as duas leis fundamentais implicam que os mesmos se posicionarão dentro de um retângulo limitado pelos eixos e pelos valores:
"c" e "1 / ћ"
É um sonho dos físicos (ou um prejuízo) que em época próxima se desenvolva uma teoria completa, no sentido de que contenha em seu formalismo uma representação para todos os elementos relevantes da realidade física, e concluída, no sentido de que todos os aspectos de seu formalismo tenham uma interpretação clara e sem ambigüidades, e que seja aplicável a todos os sistemas físicos posicionados dentro do retângulo do diagrama V-I, podendo predizer comportamentos que se corroborem experimentalmente. Para completar o sonho podemos pedir, além disso, que esta teoria seja de grande beleza, simples e de fácil divulgação.
Tal sonho não se realizou ainda, mas existem boas aproximações à teoria desejada que são aplicáveis em certas regiões parciais do diagrama V-I. Para apresentar estas teorias consideremos o retângulo do diagrama dividido em quatro regiões que correspondem à velocidades muito menores que "c" ou próximas a eIa, e a ações muito maiores ou próximas a "ћ". Os limites entre estas quatro regiões são difusos. Para a análise e estudo dos sistemas físicos que se posicionam na região inferior esquerda do diagrama V-I, ou seja, para aqueles caracterizados por velocidades muito menores que a velocidade da luz e por uma ação muito maior que ћ dispomos de uma teoria, a mecânica clássica (MC), que nasceu com Galileu e Newton no século XVII e se foi aperfeiçoando até adquirir um formalismo de grande beleza e potência no século XIX.
Esta teoria conta, além disso, com uma interpretação clara e sem ambigüidades e, no século XIX, ninguém supunha que fracassaria rotundamente quando fosse aplicada a sistemas físicos posicionados fora da região marcada por MC no diagrama. Pensava-se que se havia encontrado a teoria definitiva da física, sem suspeitar que o século XX traria duas revoluções científicas que fariam estremecer sua hegemonia.
A mecânica clássica explicava desde o movimento dos planetas até o comportamento dos objetos menores acessíveis a nossos sentidos. Com êxito se estendeu a sistemas de muitas partículas na mecânica estatística, termodinâmica e mecânica de sistemas contínuos como os gases, fluidos e sólidos. Pensava-se que não havia mais que refinar os métodos de cálculo para explicar o comportamento de todos os sistemas físicos. Era uma época de grande soberba. Dizia-se que conhecendo a posição e velocidade de todas as partículas do universo poderíamos calcular sua posição até o final dos tempos. Somente alguns pequenos problemas opunham resistência: não se podia explicar a distribuição de freqüência (cor) da luz emitida pelos corpos quando se esquentam e tampouco se podia detectar o incremento na velocidade da luz quando a fonte que a emite se move. A solução a estes "pequenos" problemas geraria duas grandes revoluções paradigmáticas: por um lado, a mecânica quântica e, por outro, a teoria da relatividade.
Os sistemas físicos representados na região marcada por MCR, ou seja, aqueles de grande ação (inação pequena), mas velocidades que se aproximam à da luz, devem ser estudados com a teoria da relatividade que denomino aqui mecânica clássica relativista (MCR). Os que estão caracterizados por ação próxima a ћ e velocidades pequenas serão tratados com a mecânica quântica (MQ), que é a teoria que nos ocupa nesta seqüência de artigos de Coluna da RedePsi. Finalmente, para os sistemas físicos que requerem um tratamento quântico e relativista, dispomos da mecânica quântica relativista (MQR) para seu estudo.
Considerando o formalismo e a interpretação destas quatro teorias, encontramos diferenças significativas. As duas teorias "clássicas", MC e MCR, podem ser consideradas completas e concluídas por ter um formalismo que abarca todas as propriedades do sistema físico e porque todos os elementos daquele possuem uma interpretação clara e sem ambigüidades. Além disso, ambas as teorias se conectam em forma contínua entre si, porque tanto seus formalismos como suas interpretações coincidem no limite de considerar à velocidade da luz "c" tão grande, comparada com as velocidades do sistema físico, que possa ser tornada infinita.
Isto significa que se em qualquer fórmula da MCR tomamos o limite c→∞, obtém-se uma fórmula válida em MC e, do mesmo modo, todos os conceitos de massa, velocidade, aceleração, força, energia etc., coincidem neste limite. Com respeito ao grau de validez de ambas as teorias se deve esclarecer que, se bem que a MC não se pode aplicar na região MCR do diagrama, a MCR sim se pode aplicar na região MC com resultados corretos. Pode-se calcular o lento movimento do pêndulo de um relógio com a MCR, ainda que com a MC chega-se mais facilmente a resultados suficientemente precisos para todos os fins práticos. O mesmo sucede com os graus de aplicação da MQ e da MC. A MQ é válida na região da MC, mas não o inverso, e torna-se bastante estranho, ainda que correto, calcular o pêndulo do relógio com a MQ. Contrariamente ao que sucede entre a MCR e a MC, não existe entre MC e MQ uma transição suave para seus formalismos nem para suas interpretações. A MQ conta com um belíssimo formalismo, mas este não se transforma no formalismo da MC quando fazemos o limite ћ → 0. É certo, contudo, que as predições experimentais da MQ se conectam com as correspondentes da MC neste limite. Temos mencionado várias vezes que a MQ não tem ainda uma interpretação definitiva, pelo que nem sempre está clara a relação entre o significado dos elementos do formalismo da MQ com os conceitos da MC. A MQR é, em princípio, aplicável a todos os sistemas físicos do diagrama V-I. Contudo, esta teoria dista muito de ser a teoria sonhada pelos físicos, já que seus problemas de interpretação são, todavia, mais graves que os da MQ e, apesar dos formidáveis avanços feitos nas três últimas décadas, seu formalismo tem ainda sérias dificuldades matemáticas não resolvidas.
Finalizo a apresentação das diferentes teorias físicas mencionando o posicionamento no diagrama V-I do eletromagnetismo.
Esta teoria estuda os campos elétricos, magnéticos e as ondas eletromagnéticas. Contudo, pode considerar-se que o sistema físico de estudo que lhe corresponde é o fóton, partícula de massa zero que se move à velocidade da luz, o que coloca esta teoria na linha superior do diagrama V-I. Ainda que se ignore sua origem, o eletromagnetismo acabou sendo uma teoria relativista. Tampouco mencionamos a teoria da relatividade geral, necessária quando o sistema físico em questão possui campos gravitacionais tão intensos que modificam a geometria euclidiana introduzindo uma "curvatura" local. A rigor, para introduzir esta nova teoria necessitaríamos uma nova dimensão no diagrama.
O diagrama V-I nos permitiu classificar os sistemas físicos e, em particular, definir a MQ fixando seu grau de aplicação. Ajuda-nos, além disso, apresentar um argumento de importância para poder estudar a MQ. Notemos que no diagrama se posicionou uma figura humana na região MC. Isto significa que todos os sistemas físicos com os que o ser humano inter-atua, que são aqueles que vão formar nossa intuição, são sistemas clássicos. De fato, nossa expectativa, o que intuitivamente esperamos do comportamento dos sistemas físicos, se formou, ou foi gerado, a partir do contato que temos através de nossa percepção sensorial com sistemas físicos clássicos. Mas sabemos que existem sistemas físicos nos quais a teoria clássica fracassa rotundamente; portanto, não devemos nos assombrar demasiado que a própria intuição também fracasse quando pretendemos aplicá-la em tais casos. Devemos estar preparados a tolerar que o estudo dos sistemas quânticos ou relativistas exija a aceitação de certos conceitos que podem ser altamente contrários à nossa intuição. Por exemplo, o contato com os sistemas clássicos nos acostumou a somar as velocidades como se fossem números: se lançamos uma pedra a 20 km/h de um veículo que se move a 10 km/h, a velocidade da pedra relativa ao solo será 20 + 10 = 30 km/h. Mas se o veículo se move à metade da velocidade da luz (0,5c) e a pedra é um fóton que viaja à velocidade da luz, nossa intuição se equivocará ao predizer c + 0,5c = 1,5c violando a lei fundamental V ≤ c. A intuição clássica nos diz que as fitas e relógios que usamos para medir distâncias e tempos são invariantes absolutos para todos os observadores. Contudo, a relatividade viola nossa intuição clássica ao propor que ao longo das fitas e o período dos relógios variam segundo a velocidade que estes tenham. Esta contração das distâncias e dilatação do tempo tem sido confirmada, sem lugar a dúvidas, em numerosos experimentos. Outro exemplo: o contato com sistemas clássicos nos acostumou a que uma pedra está em um lugar ou não está ali; na mecânica quântica a um elétron se lhe assinala uma probabilidade de estar em certo lugar que, em algumas ocasiões, não é nem zero (não está), nem um (está), ou algum valor intermediário.
A intuição é clássica por haver sido gerada em contato com sistemas físicos clássicos. O estudo de sistemas relativistas ou quânticos requer adotar alguns conceitos contrários à intuição.
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