42091210229051065199.png O Axis Mundi: A 'ordem implicada' de David Bohm

A 'ordem implicada' de David Bohm

por Osvaldo Pessoa Jr.


No texto 23, “A Interpretação da Onda-Piloto”(clique aqui e leia), apresentamos o importante trabalho do físico norte-americano David Bohm nos anos 1950, sobre os fundamentos da teoria quântica. Em torno de 1970, ele desenvolveu uma nova concepção, baseada na noção de “ordem implicada” ou “implícita”, que não teve o mesmo impacto que seu trabalho anterior, mas que salientou bem o aspecto holista do universo quântico, tendo influenciado as posteriores correntes do misticismo quântico.

Essa nova concepção de Bohm é apresentada na coletânea de textos “Totalidade e Ordem Implicada”, traduzida para o português em 1992 pela editora Cultrix, com uma nova tradução lançada em 2008 pela editora Madras (o original em inglês é de 1980).

A física clássica privilegia uma descrição da realidade física no espaço e no tempo, e com as teorias da relatividade consolidou-se a noção de que as ações dos corpos se propagam a uma velocidade finita (discutimos isso no texto 18, “Teorema de Bell para Crianças” - clique aqui e leia). Isso sugere que, ao se descrever um sistema físico, se possa analisar o sistema em diferentes componentes separados.

Por exemplo, ao estudar o movimento dos corpos do sistema solar, pode-se ignorar a existência da galáxia de Andrômeda. Sabemos, porém, que a força exercida por essa galáxia é suficiente para fazer um corpo, na Terra, deslocar-se um mícron (um milionésimo de metro) em uma hora. Tal efeito não é mensurável porque toda o sistema solar sofre a mesma aceleração, e há um octilhão de estrelas exercendo suas forças sobre nós. Mas o fato é que, mesmo para a física clássica, não se pode, a rigor, isolar um sistema do resto do Universo. Na prática, porém, tal separação de uma parte não compromete os cálculos que são feitos, e pode-se então ignorar o resto do Universo ao se fazer um cálculo sobre o sistema solar.

A situação mudou com a física quântica, e os estados “emaranhados” de duas partículas, que podem levar ao fenômeno chamado “não localidade”, vistos no texto 18 (clique aqui) e também nos textos 26 (“Astrobigobaldo quer Informação Instantânea” - clique aqui) e 29 (“O Paradoxo de EPR”- clique aqui). Apesar de a questão de como interpretar a não localidade ainda ser controvertida, há uma concordância de que a tentativa de descrever cada uma das partículas do par emaranhado, de maneira isolada, leva a um par de “estados mistos” separados que não descreve todas as propriedades mensuráveis do sistema, que podiam ser obtidas como o estado emaranhado original. Ou seja, não se pode analisar sistemas emaranhados a partir de partes espacialmente separadas.

É por essa razão, então, que Bohm buscou construir uma nova abordagem para a ciência, partindo da concepção de um universo de totalidade indivisível. Essa concepção, por sinal, já estava presente no livro “Quantum Theory” (pp. 139-40), de 1951. Na década de 70, cunhou novos termos, refinou e estendeu sua discussão.

A ordem tradicional da física clássica, baseada na distribuição dos eventos no espaço e tempo, que chamou de “ordem explícita” ou “desdobrada”, não seria a ordem fundamental. A ordem mais profunda, a partir da qual se explicitariam o espaço e o tempo, seria o que chamou de “ordem implicada” (em inglês: implicate order) ou “envolvida”. Assim, duas partículas emaranhadas teriam uma ligação ou dependência mútua que seria anterior ao espaço-tempo.

Na ordem implicada, um elemento pode se desdobrar em uma região extensa do Universo. Isso guarda semelhanças com o que ocorre na difração das ondas, exemplificada no experimento da dupla fenda com luz ou elétrons (ver texto, “Interpretando o Experimento da Fenda Dupla” - clique aqui). Neste experimento, o padrão contido em uma pequena região (as fendas) é projetado em uma grande região na tela. Tal transformação é descrita matematicamente por uma “transformada de Fourier”.

Um aspecto interessante é que uma transformada da transformada gera de volta o padrão inicial (a menos de alguns detalhes). A figura abaixo representa a transformada de uma pequena figura de cavalo. Notamos que a sombra formada numa parede distante não se parece em nada com um cavalo, mas toda a informação original está lá, transformada, “implicada” (o padrão do lado direito da figura foi gerado pelo físico Eduardo Khamis). Se uma pequena transparência for impressa com esse padrão, e colocado no caminho de um feixe de luz, a figura resultante na parede terá a forma (bidimensional) do cavalo original, correspondendo assim a uma ordem “explícita”. Esse fenômeno pode ser observado naquelas pequenas lanternas chinesas, de raio laser avermelhado, que projetam formas como a de um cavalo. Se olharmos com um pequeno microscópio para a máscara que é colocada na lanterna, ela parecerá um padrão de pontos aleatórios. Cada ponto na fenda é projetado na parede como um padrão de anéis concêntricos, e o padrão resultante acaba ficando parecido com um cavalo.
Bohm não faz uso desta analogia com a difração, mas com um fenômeno mais complexo conhecido como “holografia”, que discutiremos no próximo texto. Com isso, chegou à conclusão de que cada pequena região do espaço e do tempo contém implicitamente a ordem total do Universo. Tal afirmação nos faz lembrar do “aleph” de Jorge Luis Borges, uma pequena esfera perdida no porão de uma casa em Buenos Aires onde se podia ver todos os detalhes do Universo:
“Nesse instante gigantesco, vi milhões de atos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o fato de todos ocuparem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência. O que meus olhos viram foi simultâneo; o que transcreverei será sucessivo, pois a linguagem o é” (“O Aleph”, Editora Globo, 1978, p. 133).

Outra característica da visão de Bohm é o que ele chamou de “holomovimento”, que combina sua concepção holista do Universo indiviso com uma “ontologia de processos”, ao invés de uma ontologia de coisas. O termo filosófico “ontologia” se refere à questão sobre o que é feito o mundo, do que é constituído o mundo. O materialismo mecanicista, por exemplo, tende a ver o mundo como constituído de matéria (que seria sua ontologia básica) provida de movimento. Uma filosofia de processo coloca como mais fundamental o movimento, o fluxo, a mudança, e a partir desse processo emergiriam estruturas dinâmicas relativamente invariantes, que denominamos “coisas”. Ao longo da história, metafísicas de processo foram propostas por Heráclito, Whitehead, Bergson, Prigogine, entre muitos outros.

Outro aspecto interessante dessa concepção, presente também em sua teoria causal (de variáveis ocultas, ou da onda piloto) de 1952, é considerar que a realidade do Universo quântico é fundamentalmente multidimensional. Por exemplo, duas partículas emaranhadas corresponderiam a uma única entidade em 6 dimensões espaciais. O que vemos como duas partículas correlacionadas seriam projeções desta entidade única em dois eixos ortogonais, assim como um peixe em um aquário é visto de maneiras diferentes em lados ortogonais do aquário (por exemplo, em um lado o vemos de frente e de outro o vemos de lado). Tal ideia já tinha sido discutida por Max Born no Congresso de Solvay de 1927, mas Bohm é um dos poucos a defendê-la explicitamente.

A interpretação do holomovimento de Bohm busca fornecer um arcabouço geral para que se desenvolva uma nova abordagem para a física, mas ela não apresenta descrições mais detalhadas de fenômenos quânticos. Bohm, em colaboração com Basil Hiley e outros, explorou o uso de certas álgebras para exprimir como seriam as leis do “pré-espaço”, mas os resultados obtidos não foram muito relevantes.

Bohm especulou também que a ordem implicada se aplicaria tanto para a matéria quanto para a consciência. Utilizou a teoria do neurologista Karl Pribram, que também se inspirou na holografia, e que examinaremos no próximo texto. A visão geral de Bohm parece se aproximar daquela defendida no séc. XVII pelo filósofo holandês Spinoza: matéria, vida, consciência seriam algumas “projeções” de uma totalidade multidimensional única. 

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